quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Em terra de cegos... e surdos...

Leiam essa notícia do Omelete.

http://www.omelete.com.br/cine/100015488/Ensaio_Sobre_a_Cegueira.aspx

Cegos dizem que o filme transforma-os em monstros amorais estupradores comedores de criancinhas.

A piada de humor negro óbvia é "Mas eles nem viram o filme poxa! Como estão falando isso?".

Caramba, o filme não mostra como os cegos são maus. Ele mostra como todo mundo é mau, e que num momento em que todos estão no mesmo barco, e o barco não é um barco confortável, essa maldade vem à tona.

Ah caramba, todo mundo quer tirar uma graninha de todo mundo. Eu vou processar o Peter Jackson porque o Senhor dos Anéis mostra pessoas baixinhas como sendo tremendos bunda-moles (o Frodo, pelo menos).

Em terra de cego...

Gosto bastante de histórias que desmontam um pilar conhecido da existência humana. Quando bem feitas, demonstram o que o homem pode fazer quando se vê em determinada situação extrema, e nos fazer pensar "o que eu faria nessa situação".

Ensaio Sobre a Cegueira, de Fernando Meirelles, desmonta a decência, a sociedade e o moralismo humano, ao criar um cenário onde as pessoas ficaram cegas.

Uma epidemia de cegueira começa a se espalhar por um país desconhecido. Pouco a pouco, todos vão ficando cegos, e o governo, não sabendo o que fazer, decide criar uma quarentena.

Então é criado um universo paralelo, que pouco se comunica com "o mundo de fora", e onde novas leis e novas regras valem. E lá dentro, o primeiro a conseguir vantagem sobre os outros tenta manter essa vantagem, atravessando qualquer ética possível.

E no meio de um monte de cegos temos o personagem de Julianne Moore, que resiste à doença, novamente sem explicação. Só sabemos o que ela sabe, que ela precisa ficar perto do marido, afetado pela cegueira. Nada mais importa.

Nessa terra de cego, ela não se vê como rei. Se vê como escrava, porque não pode governar quando está no meio das necessidades do povo. Ela ajuda, ela lidera, ela limpa, alimenta, cura, o máximo que pode. E não pode fazer nada quando aproveitadores tomam vantagem sobre a situação do universo em questão.

É um filme bem pesado. Deveria até ser mais, pelo que ouvi de notícias que o Fernando Meirelles precisou retirar algumas cenas de violência contra mulheres para deixar o filme menos intragável. Mas não é na violência gráfica, e sim na psicológica. A total quebra de moralidade quando você tira algo tão primordial e natural para a sociedade como um todo, 'ver', é bem impactante. Vemos isso em um ou outro filme futurista, no qual a sociedade se ve quebrada, e o mundo vira "terra de ninguém".

Os atores estão excelentes, a própria Julianne Moore conduzindo o filme com naturalidade e carisma. Gael Garcia Bernal, que interpreta um dos cegos aproveitadores, se esbalda no papel, engolindo quem quer que esteja em cena com ele. Alice Braga dá uma ótima demonstração internacional de que tem talento, bem além do que foi em A Lenda. Mark Ruffalo e Danny Glover estão fazendo o de sempre, não sendo esplêndidos, mas no mínimo competentes.

Agora, a genialidade que há em Fernando Meirelles é outra história. Quando você lê o livro de José Saramago, você tem a impressão de ver tudo branco, já que a doença causa uma cegueira branca. O filme inteiro é saturado de uma cor leitosa, perolada, criando um ar quase etéreo, de irrealidade. E então você vê pessoas reais, acontecimentos reais, lugares reais, que apesar de não representarem lugar específico nenhum, ancoram você na realidade da coisa. Um fenômeno fantástico levando pessoas comuns de lugares comuns a situações incomuns.

Ver São Paulo em um filme é uma coisa, mas ver uma São Paulo pós-apocaliptica é outra. Não faço a menor idéia de quantos pauzinhos Meirelles precisou mexer pra limpar as ruas de pedestres e carros e maquiá-las com o caos de uma cidade cega. É fantástico, imagens incríveis, que para nós, ou para mim, pelo menos, que vejo aquele cenário todos os dias, estando na tela do cinema sob aquela perspectiva criam uma empatia. Mas para o resto do mundo, aquelas imagens querem construir uma cidade inexistente. Porque a cidade não tem nome, o país não tem nome, e os personagens não tem nome. Porque num mundo de cegos, nomes não tem importância, como está no livro e é mencionado no filme.

Pessoas reais em situações extremas, de crueldade e de ignorância governamental. É um belo estudo da natureza humana, tanto negativo quanto positivo. As pessoas são capazes de se aproveitar das outras quando todos estão no mesmo barco. Mas pessoas também são capazes de serem heróis quando se vêm numa situação superior à de outras.