quarta-feira, 15 de abril de 2015

Outra Tartaruga

Eu acordei num mundo sem Terry Pratchett.


Há muito tempo, um matemático muito louco, com uma atração muito questionavel pela sobrinha, fez um poema chamado Jaguadarte e o inseriu em seu livro Alice Através do Espelho. É um poema que descreve… Algo. Algo mágico. Disforme. Torto e misterioso. Não faz o menor sentido. Era um dos primeiros e mais expressivos expoentes do Nonsense, esta forma de arte que muitas vezes consiste em bater cocos e fingir estar cavalgando através de campos ingleses atrás de cálices sagrados, e que influencia o girar do mundo desde que alguém percebeu que “humor” e “sentido” são conceitos que podem, sim, passar por um difícil período de divórcio. Estava ali expresso em outra forma de arte, uma muito mais difundida e muito menos interessante. A literatura, no seu sentido mais originário e profundo, é o trabalho de juntar letras numa forma coerente e fazer alguma coisa a partir disso. Literatura, em seu sentido mais prático, é a construção de livros, de histórias narradas através de palavras. Literatura, em seu sentido mais metrossexual, é como as pessoas chamam “livros de verdade”, como se houvesse alguma coisa no mundo como “arte falsa”.
Terry Pratchett disse uma vez que as pessoas acusavam ele de fazer literatura.
Enquanto escrevo estas palavras, faz trinta e quatro dias que acordo num mundo sem Sir Terry Pratchett. Ele foi um autor britânico de fantasia que escreveu mais de quarenta livros, chegando a bater J.K. Rowling como o autor mais lido no Reino Unido, e isso bem no meio do frisson Potteriano.
São trinta e quatro dias em que o mundo é mais redondo, no mau sentido. Sem aquele planeta em forma de disco que Pratchett criou, equilibrado no lombo de quatro elefantes, dispostos no casco de uma tartaruga galática. Trinta e quatro dias sem aquela forma fantástica de escrever, que fazia dele réu de todas as acusações literárias.
A escrita de Pratchett era, de fato, bem elaborada. Poucas vezes o mundo viu alguém que tivesse tanta facilidade para fazer as palavras, seus sentidos, seu lirismo e sua transcendência dançarem a favor da história que está contando. E ele fazia isso com graça, com dureza, com ritmo e com fervor. Mesmo assim, muita gente preferiu ignorar Pratchett, só porque o grosso de seu trabalho pertencia a “gêneros” “menores”: a comédia e a fantasia.
Pratchett usava a fantasia e a comédia como um pintor usa o azul. Às vezes é um céu, de fundo. Às vezes é um pássaro, o assunto da pintura. Às vezes o pintor é um desses moderninhos cujas telas são inteiramente azuis e você não entende muito bem o que ele está fazendo, mas o pintor nunca quis que você o “entendesse”. A comédia e a fantasia de Pratchett não eram o “pano de fundo” somente, como em diversas outras obras. Tomavam o palco central para servirem de tema, de transporte, de modelo, de explosão. Pratchett conseguia misturar sátira e conceitos elaborados de “high fantasy” com o mais puro nonsense de maneira fenomenal. Sua atenção a detalhes era invejável. Por exemplo, num mundo em forma de disco, ninguém seguia direções como “norte, sul, leste e oeste”, e sim “centro, borda, anti-horário e horário”.
A comédia é, para todos nós, tanto um alívio quanto uma arma. E Pratchett apontava ela para tudo e para todos. Arquétipos literários clássicos, a insanidade das religiões extremas, os sistemas de poder que regem o mundo. E o britânico safado ainda tinha a pachorra de fazer tudo com um nível de humanidade surpreendente. Seus personagens são sim, bruxas, bárbaros, turistas, vendedores de seguro e magos fajutos, mas todos são humanos (menos o Bibliotecário, ele é um orangotango). As fraquezas e os sonhos nas histórias de Pratchett são tão épicas quando as que existem em cada um de nós. Seu personagem mais querido, Morte, é o anjo da morte do Discworld (seu trabalho, não sua personalidade), e muitas vezes tudo o que ele queria era uma fazenda e uma família, e não esse vai e vem de almas, acidentes de trabalho e assassinatos. Falava tudo em letras maiúsculas, e era quem mais mostrava entender sobre as peripécias do ser humano. Outra coisa que estava sempre em seu trabalho era a cultura popular. Mitologia, cinema, música, política, tudo era transportado para o Discworld e para suas outras obras como piadas, mas piadas tão certeiras que, depois de passada a hemorragia, você de fato chegava num novo nível de entendimento.

Sua principal força era a magia que fazia com as palavras, subvertendo expectativas e significados a cada parágrafo, desconstruindo preconceitos e criando vida. As ações e situações em seu mundo-disco quase nunca seguiam o senso comum de nosso mundo-globo, mas diferente do Jaguadarte, eles chegavam em algum lugar. Não era exatamente uma lição de moral clássica, mas sim um desdobramento daquilo que você achava conhecer bastante.
Houve outro autor, também falecido muito antes de seu tempo, que tinha muitas semelhanças com Pratchett, mas sua obra gozou de muito mais prestígio fora das terras britânicas. Douglas Adams teve ainda um filme de alto orçamento baseado em seu Guia do Mochileiro das Galáxias, e é referência em 11 entre 10 conversas desses nerds de hoje, que esqueceram completamente da época em que ser nerd era um crime . Adams realmente era muito engraçado e muito bom. Pratchett fazia com a fantasia o que Adams fazia com a ficção-científica. Mas Pratchett, por conseguir inserir coração e filosofia de verdade, ao invés de sarcasmo desocupado e “one-liners” capciosas, era um escritor superior. (É amiguinhos. Toquei num bastião do paradigma literário. No próximo texto vou falar mal do Tolkien).
O mais famoso amigo de Pratchett, Neil Gaiman, (que com ele escreveu o livro Belas Maldições) dizia que as pessoas não deveriam confundir: Pratchett podia parecer um senhor bonachão e brincalhão, com seus jogos de palavras, seu chapéu fedora preto e sua aparência de “Freud com drogas mais recreativas e menos pesadas”; mas na verdade ele estava furioso. Furioso com o mundo, com as instituições. Furioso com sua própria mente, que deteriorava rapidamente em razão ao seu estágio avançado da doença de Alzheimer. Furioso com o governo, que não lhe permitia executar uma eutanásia que tanto queria.
A fúria de Pratchett tinha uma razão de ser, mas discordo sobre ser seu mote. Pratchett criava admiração, amor, heroísmo e nobreza a partir de párias e de espíritos malignos. Seus finais não eram só “felizes”, eles eram o repouso após uma aventura louca (e nunca acabavam como você imaginava). Pratchett podia usar sua fúria como locomotiva, mas a usava para chegar num lugar cheio de beleza.
Esse era Terry Pratchett para mim. O homem que era, na minha opinião cheia de humildade e 45% confiável, o melhor escritor vivo no mundo.
Até o dia 12 de março, quando  sua doença, definida por ele mesmo como “um aborrecimento”, o levou a encontrar seu maior personagem, alto, ossudo, sempre sorrindo e sempre falando em CAPS LOCK. E juntos foram procurar outra tartaruga, em outro lugar, longe daqui.
O mago Rincewind. A vovó Cera do Tempo. O Capitão Samuel Vimes. O Bibliotecário. O inútil Mort. O Morte. Cohen, o bárbaro. Lord Vetinari. Moist Von Lipwig. A Bagagem. Duas-Flor, o turista. Os Pequenos Homens-Livres. Vampiros. Deuses pequenos. Guardas. Dragões. A grande tartaruga 
A’Tuin.
Todos ficamos órfãos agora.
Vá em paz, Sir Terry.