sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Tout cela fait partie du plan

A maioria dos dias são dias perfeitamente normais para a maioria das pessoas. São dias em que nada sai do comum. São dias que nem lembrados são. Como comentado no recente sucesso dos podcasts, Serial, a investigação de um caso de assassinato se dificulda especialmente porque os envolvidos não lembram-se de detalhes de um dia comum.
O que faz do que aconteceu em Paris segunda semana de janeiro de 2015, um dia não só memorável, mas que dificilmente será esquecido. A coisa mais incomum imaginável para qualquer cidadão do mundo civilizado é estar no meio de uma zona de guerra. Dois terroristas invadiram a redação de um folhetim, fuzilaram vários de seus funcionários, entre redatores e cartunistas, e fugiram. No dia seguinte, no meio da perseguição policial, em outra parte da cidade, um terceiro terrorista armou uma situação com reféns, em auxílio aos outros dois. No total, 17 pessoas morreram, sem contar os três terroristas.
A comoção foi imediata e mundial. Milhares de pessoas prontamente se manifestaram a favor das vítimas. Ou, quando discutiam sobre a falta de respeito religioso e possível discurso de ódio perpetrado pelo folhetim, que não era exatamente “bem intencionado” na opinião de muitos, pelo menos eram ligeiros em condenar a resposta com balas. Afinal, motivos políticos à parte, todos sentiram que a liberdade de expressão em si é que foi atacada. Cinco dias depois, 4 milhões de pessoas fizeram uma passeata nas ruas de Paris. Um outro mutirão foi filmado, onde andavam de braços dados vários líderes do mundo. Alemanha, Itália, França, Reino Unido, e até mesmo Israel e Palestina foram marchar para mostrar apoio.
Mas é absolutamente deprimente a completa falta de compromisso com o resto do mundo. No dia 6 de janeiro, dia do primeiro ataque, enquanto o mundo se chocava com as primeiras notícias sobre o tiroteio, uma bomba explodia no Yemen, matando no mínimo 32 pessoas. Começando em 3 de janeiro, outro grupo terrorista começou a matar, parece que simplesmente por pontuação, pessoas do nordeste da Nigéria. Pelo dia 10, já tinham atingido a marca de 2000 mortos. Há relatos de crianças de 10 anos sendo forçadas a vestir um colete explosivo e sendo usadas contra multidões.
Eu passei quase que os dias inteiros que seguiram o tiroteio discutindo muito. Conversando sobre todos os assuntos possíveis envolvendo o que aconteceu. Religião, extremismo, fundamentalismo, limites do humor. Enxergando as divergências socioculturais que ajudam a entender um pouco do ocorrido. Lendo entrevistas e vendo declaraçõs, das mais lógicas às mais estapafúrdias, pessoas dando o seu tostão sobre aquilo que marcará 2015. E ouvi tão, tão pouco sobre o ocorrido na Nigéria.
Agora a poeira já baixou em Paris, os cartunistas foram sepultados. Os protestos pararam. E gente continua morrendo na Nigéria. Claro, li e ouvi muitos comentários sobre isso. Sempre aquele tipo de comentário reclamando, meio como este próprio texto, de que aparentemente 17 franceses valem mais comentários do que 2000 nigerianos. Talvez seja uma aplicação do humanismo comunista de Stalin, que dizia que a morte de uma pessoa é uma tragédia, e a morte de milhares é uma estatística. Talvez seja outra coisa.
Não é uma competição de tragédia. Ninguém quer medir o que causa mais dor. Eu só quero lembrar ao leitor, deixá-lo consciente, de que existe uma ordem nas coisas. Um terrível fator de conformismo, o qual esquecemos no dia a dia. Porque se 2000 pessoas mortas na Nigéria causassem mais comoção do que um atentado na França, isso sim seria surpreendente, infelizmente.
Um dos mais geniais monólogos do cinema nos últimos anos, provavelmente muito mais valorizado pela interpretação do que pela escrita, está no segundo filme do Batman mais recente, O Cavaleiro das Trevas. O Coringa, imortalizado por Heath Ledger, explica como funciona o mundo para Harvey Dent, que está enfrentando um momento de extrema dor física e emocional. Ele explica que quando algo ruim acontece dentro do esperado, dentro do plano natural das coisas, ninguém se importa. Mesmo que o plano seja horripilante. Quando uma coisa, por menor que seja, acontece fora do plano, todos perdem a cabeça.
Não, a morte de 17 pessoas não é pequena. E não está no plano de ninguém. E fez o mundo perder a cabeça. Já que aqui no Brasil nós tivemos ataques à pessoas que compartilham a fé dos terroristas, mas que não tinham absolutamente nada a ver com o ocorrido, podemos concluir que sim, o mundo perdeu a cabeça. E sim, tem gente estúpida no Brasil.
Mas ninguém se moveu muito pelos nigerianos, pelos cidadãos do Yemen, ou por pessoas de classe baixa ou de regiões mais inóspitas no próprio Brasil perdendo sua vida. Não estou falando de passeatas de fachada. Ninguém perdeu a cabeça por causa disso. Não são os atos que não existiram. São os princípios.
A motivação por trás dos assassinatos na França foi ideológica, e isso pode ter alarmado o mundo e criado passeatas em defesa da “liberdade de expressão”. Mas no fim do dia, o evento foi exatamente o que pareceu: assassinato. Motivado por poder e loucura. Assassinatos motivados por poder e loucura que atacam cartunistas franceses mudaram o mundo. Assassinatos motivados por poder e loucura que atacam cidadãos africanos talvez não. De alguma forma, a sociedade moderna nos criou para considerar a morte “do outro” uma coisa comum. É perfeitamente parte do plano uma criança indígena ser queimada viva por madeireiros. É parte do plano a morte de africanos, indianos, ou qualquer habitante de lugares inóspitos. Mas um dano feito a alguém “do nosso time”, do mundo "civilizado", é um transtorno. Parte, imagino, porque se mostra mais perto e mais real, numa consideração muito bizarra da geografia mundial onde a França é logo aqui e a África nem no planeta fica. África, inclusive, que pouco se mexeu. Nem a proximidade geográfica fez com que outros países de lá se fizessem qualquer sinal de ação por causa dos ataques. A idéia de que raça, poder e dinheiro separam as pessoas é uma idéia perversa, mas extremamente forte e extremamente inserida na sociedade mundial.
Um mundo sem assassinatos é possível, e vai começar com pessoas perdendo a cabeça por coisas pelas quais merece-se perder a cabeça. Assassinatos na França. Na Nigéria. No seu município. Afinal, na sua cidade já morreram pessoas por causa da injustiça, e isso não comoveu você.
Novamente, não espero e nem quero “ações”. Antes, procuro a misericórdia. Misericórdia une o termo “miséria” e o termo “cardio”, e significa “sentir a miséria com o coração”, segundo me explicou um pastor. E como diz o Chaplin em seu O Grande Ditador, falta aos homens a capacidade de sentir.
Ninguém mais percebe o que quero deixar aqui, como alerta. De que essa ordem mundial, esse plano, isso é o desnatural. Você foi feito com a capacidade de se colocar no lugar do outro. Mas todo dia que decide permanecer o mesmo de ontem, se conforma mais com as coisas. É uma adulteração bizarra do que faz do ser humano um ser humano.
Os assassinatos na França não mataram a humanidade. Mas a tornaram mais estranha.