segunda-feira, 9 de abril de 2012

O Capitão

O tempo é algo difícil de perceber sem uma “âncora”. Sem um fato que faça você olhar pra trás e enxerga-lo como uma linha. Às vezes você não consegue fazer isso nem usando a sua própria vida.


Mais ou menos na metade da década de 90, quando eu morava em Santos, aparece no nosso quintal de casa um gato vira-lata todo machucado. O gato nem queria nada. Parecia que caiu ali sem ter escolha. Nós cuidamos dele. E quando ele começou a ser convidado a entrar em casa, ele começou o estranho ritual de querer sempre água. E carinho. E comida. E água, sempre água.


Poderia dizer que ele mandou baixar a tal “âncora”, porque começou aí uma linha de história que durou até ontem. Minha bisavó batizou ele de Capitão.


Eu sempre ouvi que gatos eram animais ariscos, solitários, misteriosos, evolvidos com bruxaria, traiçoeiros. Eu nunca consegui concordar com essa opinião por causa desse gato. Ele era viciado em companhia, em atenção. Em beber água.


Nunca importou muito como a pessoa estava. Ou se era eu, meu pai, meu irmão, minha vó, minha mãe. Ele sempre subia no colo da pessoa, exigindo a atenção que entendia ser dele. Ler jornal? Não, porque o gato subiu no jornal. Não importava se estivesse tendo briga. Se o dia tinha sido ruim. Se houvesse guerra. O gato precisava da atenção dele, e de água para beber.


Por falta de palavra melhor, eu digo que isso é uma forma extremamente instintiva de amor, que trazia uma certa alegria para todos nós. Uma constante dessas é algo que alivia qualquer semana ruim. É algo que nos ensina a procurar as coisas simples. Um reflexo do amor de Deus, que no final só quer que nós apreciemos os pedaços de comédia e de ternura com os quais Ele inundou a natureza.


Passaram-se muitos anos. E nesses anos, tanto aconteceu a todos nós. Mudamos. De cidade, de profissão, de personalidade. Eu cresci. Eu aprendi a trabalhar. Comecei a namorar. Minha família passou por muitos altos, muitos baixos. Minha bisavó nos deixou. Tantas pessoas nos deixaram. Tantas coisas nos aconteceram.


E o nosso Capitão continuava pedindo a água dele, a atenção dele. Demandando que nós o amassemos. Mas nunca como um capitão de verdade, nunca com autoridade. Sempre como uma criança pede a alguém que ama. Humildemente, com um miado alto e fino. Só mudou a sua pele, que ficou mais fina, e seus ossos, que ficaram mais salientes, especialmente nos dois últimos anos.


Eu dormia, depois de uma sexta-feira santa de muito trabalho, quando a minha mãe veio nos chamar. Meu irmão assistia O Retorno do Rei na televisão, no alto da madrugada, e Gandalf estava falando para Pippin sobre praias brancas, e além.


Ela nos chamou porque o nosso amigo mais constante nos últimos 20 anos, que acompanhou a mim e ao meu irmão transformarmo-nos de crianças em homens, e a quem nós nunca conseguimos decepcionar, precisava de mais alguns minutos de atenção. Precisava do nosso adeus.


E em seu último ato de amor, ele uniu nossa família. Talvez porque ele gostasse de nos ver juntos, talvez ele achasse que isso fosse algo mais “certo” do que nos ver separados. Talvez ele simplesmente não tivesse escolha. Mas lá estávamos nós 4, a quem ele mais cativou e mudou, em volta dele, só esperando seu pequeno coração parar de bater.


Se vai o Capitão que não afundou com o navio. Mas certamente evitou que afundasse, mesmo sem entender muito bem como fazê-lo.


Sentirei falta do meu amigo.